O inevitável fracasso do partidarismo

Por Lacombi Lauss

Com muito tempo no movimento libertário, nota-se em todo ano par o mesmo debate de sempre: partidarismo vs anti-política. Chega em um ponto que fica bastante cansativo repetir os mesmos argumentos e esclarecer posições no que diz respeito à rejeição das vias políticas. Mas em virtude desse ano o debate estar mais acalorado devido à publicação da versão tupiniquim de uma antítese do manifesto de Konkin, uma espécie de manifesto gradualista, vou abrir aqui uma pequena exceção. Trata-se de um debate importante, pois visa a influenciar como um libertário deve usar seu tempo extra no eterno combate ao estatismo. Eu pensei em dar uma resposta a esse manifesto, mas quando o li, vi que ele em momento algum tocou nos principais argumentos dos libertários puristas. Visto que não se pode responder um texto que não tem direção a seus argumentos, o melhor a se fazer é esclarecê-los. Bem, vamos lá.

Muito se diz que o PT arruinou o Brasil ou a Venezuela quebrou porque as pessoas fizeram más escolhas nas urnas. Isso é o mesmo que dizer que se pega gripe porque se anda descalço ou dorme sob o vento frio ao longo de uma janela escancarada. Não se trata de uma explicação aceitável essencialmente porque não toca o âmago da questão. Como dizia Henry David Thoreau, “para cada mil homens dedicados a cortar as folhas do mal, há apenas um atacando as raízes.”

Pessoas votaram “errado” (admitindo aqui uma suposta existência de voto “correto”) porque as ideias dominantes estão erradas. Políticos tendem à demagogia e à falsas promessas de “almoço grátis” porque é o que toca a população. Indo ainda mais longe, vê-se facilmente que o populismo dá certo porque antes da esquerda dominar o mainstream político, ela fez o trabalho de “formiguinha” e instituiu no mundo inteiro uma cultura de dependência e de subjugação das pessoas à classe política, negando as virtudes intrínsecas da auto-determinação pessoal e da livre-iniciativa e instituindo para isso uma ideia do mal necessário, que devemos obrigatoriamente nos sacrificar em prol de uma ficção sociopata, o chamado “bem-estar social”.

Olhando para um intervalo maior de tempo, vemos que esse é um fenômeno que vem ocorrendo ao longo de séculos e os números o demonstram cabalmente. Mais ainda, toda a história política dos séculos XVI e XVII até hoje é a história do fracasso das ideias da liberdade em prol do coletivismo. Hans-Hermann Hoppe usou as transições das monarquias absolutistas européias para a democracia republicana a fim de ilustrar esse ponto. Na seção “Provas e ilustrações: a exploração e a visão de curto Prazo (orientada Para o Presente) sob o regime monárquico e Sob o republicanismo democrático” de seu famoso livro Democracia – o Deus que Falhou, ele apresenta inúmeros indicadores econômicos e estatísticos para isso. Acredito que esse seja um ponto passivo no debate. Olhando para o Brasil, vê-se o mesmo fenômeno, mesmo cortando sua história em pedaços. Ainda em curtos períodos de tempo, é possível identificar como a prevalência das ideias coletivistas determinaram o rumo da política em direção ao cenário bem mais estatizante que temos hoje. Tomemos por exemplo o caso do PT: sua maior vitória não foi nas urnas em 2002, mas décadas antes, quando completou seu processo de dominação no meio acadêmico e cultural do Brasil. A vitória de Lula nas urnas, cedo ou tarde, era algo inexorável, dada essa realidade.

O PT, os antigos marxistas e principalmente a esquerda pós-moderna ganharam espaço não na política, mais sim no embate ideológico do boca-a-boca disperso dentre diversos setores na sociedade. O forte status político que eles tiveram ou têm é mera consequência disso. Erra cabalmente quem acredita que o jogo da política que ocorre nas capitais é o que determina as forças políticas por trás do establishment. Os pós-modernos estão aí para mostrar isso: literalmente sem razão, eles destruíram a old-left (que tinha fortes representações políticas, sindicais e estudantis no planeta inteiro) e sem representação política alguma dominaram a ciência, o cinema, os quadrinhos, o facebook, as universidades e agora a pauta política. Cadê o partido deles? Em 2014, onde estavam os coletivos new-lefts para apoiar campanhas de parasitas engravatados? Cadê o “manifesto político pós-moderno”? Quem fala politicamente por eles? Em última análise, o que determinou a vantagem deles sobre tudo o mais, foi o jogo das ideias e sua completa dispersão e descentralização pela sociedade. Quem olha para os palanques políticos para tirar conclusões a respeito das correlações de poder, não entendeu nada como se formam consensos em sociedade. Ao que parece, a esquerda parece ter entendido mais Mises que os libertários que insistem na política partidária – que é apenas uma mera miragem, um reflexo da política do cotidiano, da lógica das ações em sociedade.

Não creio que haja dúvidas quanto à importância do debate de ideias. Mises não cometeu exagerou algum quando escreveu que a história dos homens em sociedade é determinada por suas ideias. De fato, as ideias são as rédeas da ação humana. E apenas as ideias corretas podem iluminar a escuridão. O debate começa quando se argumenta que é possível fazer política em prol da liberdade paralelamente a esse combate de ideias. Ou mais ainda, que a política é um mecanismo importante para que as ideias da liberdade ganhe as repercussões necessárias. A isto eu pretendo expor dois pontos centrais que para mim consistem no núcleo da anti-política.

Primeiramente, haja visto que a predominância das ideias corretas é o que em última análise determina tudo o mais na esfera das relações do homem em sociedade, deve-se sempre colocar a coerência em primeiro plano. Então, a questão que se apresenta é: seria coerente defender a via política e ao mesmo tempo defender as ideias da liberdade? A resposta a isto é um claro e sonoro “não”. Para um libertário, não é difícil ver o porquê, bastando para isso entender a natureza do funcionamento do estado, uma instituição social fundada na ausência de consenso entre os homens, logo coercitiva por natureza. Em todo e qualquer lugar, o estado sempre se resume a ganhar à custa de outros. Não houve qualquer avanço nessa realidade. Podemos mudar as definições e alegar que, porque votamos, estamos nos governando a nós mesmos. Mas isso não altera a essência do problema moral do estado: tudo que ele tem, ele adquire através do roubo. Nem um centavo do seu orçamento trilionário é adquirido em trocas voluntárias. [1]

As ideias libertárias – as únicas capazes de nos livrar do câncer democrático em que vivemos – sofrem uma profunda degeneração quando combinadas com a política partidária. Ao optar por manter apoio à política, você coloca consciente e intencionalmente o libertarianismo em segundo plano, como uma meta secundária. Pior ainda: o apoio a parasitas implica em consentimento com a eficácia do sistema eleitoral como mecanismo de transformação social e a todos os embustes democráticos, levando à população a crer que da política pode-se nascer a liberdade. Apoiar políticos leva portanto a uma sistemática deterioração da mensagem libertária. Não é coerente e razoável afirmar a natureza pervertida e maléfica do estado enquanto se faz campanha para um de seus membros. Esse raciocínio pode ser resumido no seguinte silogismo: [2]

  1. Em última análise, a história é determinada por ideias;
  2. Ideias libertárias são corretas e as únicas capazes de reverter o atual quadro de avanço descivilizatório;
  3. O apoio a políticos entra em contradição com o ideal libertário, causando uma deterioração cabal na força argumentativa dos libertários;
  4. Não é possível ao mesmo apoiar parasitas e se dispor a lutar com eficiência estratégica para frear a crescente onda de degeneração moral.

É importante também salientar que a correta propagação das ideias libertárias vai melhorar as chances de políticos com maior inibição para o roubo como uma consequência indireta, embora não intencional, de modo que, curiosamente, os partidaristas já saem no lucro com o trabalho de propagação da ética libertária e suas implicações de não-agressão, ainda que na ignorância de um imediatista, eles deturpem a mensagem com um falso pragmatismo, típico de quem não entendeu ou finge não entender que os desdobramentos do mundo político são só a ponta de um complexo iceberg encrustado na realidade sociológica dos homens.

O segundo ponto é uma resposta à mais natural questão que se coloca após o primeiro: é só isso que propõem os anti-políticos, quer dizer, basta debater, escrever textos, ministrar palestras e gravar vídeos educativos e tudo estará resolvido caso um número suficientemente grande de pessoas estiverem convencidas da tese libertária? Obviamente não. É até pueril, senão ridículo pensar que não há mais nada a fazer. Ao contrário, muito pode e deve ser feito. Citando Mises novamente, “um movimento ‘anti-qualquer-coisa’ demonstra uma atitude puramente negativa. Não tem a menor chance de sucesso. Suas críticas acerbas virtualmente promovem o programa que atacam. As pessoas devem lutar por algo que desejam realizar e não simplesmente evitar um mal, por pior que seja.” Algo deve ser proposto e posto em prática para dar lugar à política como uma forma de organização social legítima. Mas para que seja algo que de fato se opõe à política, como desejamos, então ela deve emergir de baixo para cima na ordem espontânea da sociedade, ser voluntária e descentralizada. Não se pode esperar portanto que surja do dia para a noite e que seja proposto por um libertário só, afinal, não há porque haver unicidade nas soluções.

Ao longo do tempo e dos lugares, inúmeros libertários vem propondo soluções interessantes e que passam longe do meio político, algo no mínimo surpreendente haja visto que o movimento libertário no mundo não tem nem quarenta anos – no Brasil, nem uma década tem. O grande passo para impulsionar ainda mais essas empreitadas é parar de desperdiçar tempo e recursos com a política partidária. Exemplos abundam ao longo de nosso recente século. Pessoas que prezam pela liberdade estão botando a mão na massa usando BitCoins para comercializar bens em anonimato e escapar da fiscalização de um terceiro não convidado na troca, criando do zero sociedades voluntárias como Liberland e Liberstad, promovendo migrações libertárias massivas para tornar certos pequenos locais densamente povoados por quem realmente respeita a propriedade privada (como o Free State Project), criando sites em deepweb para catálogo de oferta de bens sem imposto (como as recentes cópias do Silk Road), desenvolvendo mecanismos P2P de troca de bens por BTCs (como o OpenBazzar) e até mesmo colocando o homesteading em prática e adquirindo propriedades fora do alcance fiscalizatório de governos, como vem fazendo o Adam Kokesh nos EUA, e como idealizou Patri Friedman com o Seasteading Institute – apropriação em alto mar. [3] E quanto mais pessoas conscientes e convencidas da causa da liberdade existir, mais novas soluções teremos, e mais fortes as soluções antigas serão. Chegamos então no cerne de nosso argumento: quando 10% da população entender e adotar as noções de auto-propriedade e de não-agressão, o império pode ser completamente ignorado fora de sua existência. A simples desobediência civil dará conta do recado; a resistência real (enquanto justificada e provavelmente útil) nem sequer seria necessária. Os maníacos por controle não têm nem de longe os recursos para subjugar à força 20 milhões pessoas determinadas a não serem governadas. Por outro lado, se esse mesmo 10% recusar os princípios libertários e passarem a votar no seu parasita predileto, então elas não terão alterado em absolutamente nada, a menos no longo prazo, que é a nossa meta.

O mais curioso no entanto, é que, por não entenderem e, mais geralmente, desconhecerem a ética libertária, as críticas sempre vem para o lado prático. O problema é que, antes, os partidaristas precisam explicar como o lado prático que eles propõem vai trazer algum tipo de liberdade duradoura. Mas como sabemos, os partidaristas liberais não jogam pela liberdade: estão fadados a todo e sempre a dançar a ciranda democrática com a esquerda (a cara metade deles), uma brincadeira de mau gosto que há mais de 300 anos não resultou, no longo prazo, em outra coisa senão no fortalecimento do aparato belicista e assistencialista estatal, independentemente se os burocratas são majoritariamente azuis ou vermelhos. Eleger parasitas para mendigar favores e garantir “direitos” que é utópico. Agora, se, por outro lado, eles compreendessem o libertarianismo e adotassem ao menos uma das práticas acima, o estado entraria em ruínas antes mesmo da próxima chance deles votarem para presidente. O anarcocapitalismo está aí: acontecendo na frente de todos e independentemente da vontade deles ou dos políticos.

Nesse ponto, já deve estar claro que a denominação “gradualista” que se dá aos adeptos do partidarismo está nominalmente errada, haja visto que eles têm uma altíssima preferência temporal, focando apenas no curto prazo. A política jamais traz mudanças graduais em uma só direção senão a do próprio estatismo. Para mudanças mais profundas e significativas, o projeto que eles têm para hoje é completamente estéril na melhor das hipóteses e no geral, é uma imensa perda de recursos e de qualidade na mensagem libertária. Os puristas ou abolicionistas, por outro lado, focam no longo prazo, aumentando o capital humano pró-liberdade ao mesmo tempo em que estimula e apoia as soluções descentralizadas anti-establishment. Não há nem pode haver uma solução mágica e no momento em que vivemos, a luta contra o aparato de dominação e poder do estado é talvez a mais difícil de todas. Buscar por soluções sem efetividade em longo prazo e degeneradas por princípio é subestimar o valor e a importância dessa causa.

Notas

[1] Para mais detalhes sobre a natureza do estado e sua relação com a política, veja meu artigo “Por que devemos rejeitar a política“, onde a questão moral é enfatizada. Também sobre a moralidade do voto, recomendo o artigo “Seria votar um ato de violência?” de Carl Watner. Neste presente artigo estaremos interessados em questões pragmáticas, referentes à suposição da utilidade do voto para uma profunda mudança social rumo a um ideal libertário.

[2] Esse silogismo foi primeiramente formulado no debate em escrito que tive com Paulo Kogos, cuja íntegra pode ser lida aqui.

[3] Vale notar que a tática geral que consiste na prática sistemática de boicote ao estado e à economia regulada já foi sistematizada em teoria no fim do século XX por Samuel Konkin, que a denominou de Agorismo. Ela abrange desde complexas redes de trocas no mercado negro como o Silk Road até simples atos de preferir uma carrocinha de hot-dog à uma grande corporação de fast-food ou de optar pela compra de uísques contrabandeados em detrimento daqueles em prateleiras de mercado. As novas tecnologias descentralizadas ou descentralizadoras como o já citado Openbazaar, podem ser grandes aliadas, facilitando o anonimato, quebrando barreiras físicas e conectando libertários com interesses em comum.

4 comentários em “O inevitável fracasso do partidarismo

  1. Parabéns pelo artigo. É vergonhoso admitir, mas demorei dois meses pra entender de fato por que o partidarismo é uma furada enorme pro libertarianismo. Finalmente sai da armadilha de voto, políticos, menos pior, etc. Enquanto libertários se preocuparem em ter candidatos e não em repassar as ideias e desenvolver iniciativas de agorismo e secessão, continuaremos na mesma para sempre.

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  2. Ótimo texto, leitura muito agradável. O prolema de hoje em dia é que os estado não são os estado em si mesmo, são apenas o uma espécie de maquinário ou se preferir um extensão do império corporativo. Agora as grandes corporações e bancos vão luta para destruir o livre mercado e a liberdade usando o estado como ponta de lança.

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