A Ética Argumentativa Hoppeana

Por Lacombi Lauss

Introdução

Ultimamente, tenho visto muitos debates acerca das liberdades individuais e econômicas onde muitos de seus defensores geralmente argumentam munindo-se de estatísticas e dados históricos para mostrar que tais liberdades geram um efeito benéfico para a sociedade em geral. No outro lado, os opositores também procedem da mesma forma, seguindo a lógica de que uma necessidade, geralmente coletiva, deve limitar a liberdade. Tal necessidade é quase sempre justificada por puro empirismo ou até mesmo por considerações emocionais. O problema desses argumentos é que proposições justificadas por empirismo não tem uma validade universal e atemporal, dando margens para outras afirmações contraditórias serem enunciadas. Isto é o mesmo que dizer que elas não podem ser defendidas em absolutamente nenhuma hipótese. Trata-se de um grave erro metodológico que só faz ampliar debates desnecessariamente. Somente por meio de uma Filosofia Política que não seja derivada da experiência mas sim de pressupostos logicamente inatacáveis e que prossiga por um caminho puramente dedutivo até alcançar resultados que são por si mesmos incontestáveis – e então dispensando qualquer teste empírico -, será possível defender a liberdade com consistência. Um exemplo disso é a questão da liberação das drogas. Embora esteja claro hoje que as estatísticas estejam totalmente a favor daqueles que são pró-liberação [1] (argumentando que a proibição não tem reduzido o consumo e que a guerra às drogas só tem aumentado a violência nos grandes centros urbanos), não pode existir uma justificativa definitiva de que sempre será assim baseada em meras observações descritivas. Céticos podem sempre negar a validade das premissas mesmo que não possam refutar os já bem estabelecidos princípios da ciência econômica.

Vale notar também que vários autores, de clássicos até modernos, assumem tacitamente que indivíduos possuem direitos inalienáveis sem porém oferecer uma prova para essa afirmação. Robert Nozick, por exemplo, iniciou seu livro Anarquia, Estado e Utopia [2] afirmando: “Indivíduos possuem direitos, e há coisas que nenhum grupo ou pessoa possa fazer a eles (sem violar-lhes os direitos)” sem contudo apresentar justificação alguma. Essa postura explica, pelo menos parcialmente, a tendência por parte liberais de procurar por argumentos de natureza consequencialista.

Uma teoria libertária puramente racionalista se faz portanto necessária a fim não só de resolver os problemas já citados mas também para trazer uma nova abordagem para a defesa da ética libertária. Não pode haver dúvidas de que um rigoroso argumento pelas liberdades econômica e individual é de grande valia para o recente debate com opositores. Nesse artigo pretendo mostrar como Hans-Hermann Hoppe resolveu elegantemente essa questão com uma ética universal, atemporal, isenta de juízos arbitrários de valor e justificada com base na razão seguindo sólidos preceitos lógicos.

Tudo começa com a noção de auto-propriedade. Observe sua importância na discussão citada acima: o estado, ao ameaçar de prisão um homem que viola suas leis anti-drogas, está assumindo um controle parcial sobre o corpo dessa pessoa, infringindo seu direito natural à auto-propriedade. O significado do termo, contudo, não é tão simples quanto parece, mesmo sendo intuitivo para muitos. Vamos começar portanto tecendo comentários gerais acerca do que entendemos por auto-propriedade para depois justificá-la. Por fim, será mostrado como se pode deduzir o homesteading lockeano – o direito da apropriação original – a partir das proposições  anteriormente estabelecidas.

A noção de auto-propriedade

A fim de mostrar a natureza diferenciada da auto-propriedade sobre as demais propriedades, se faz necessário distinguir dois conceitos: o de uso e o de controle, que, no caso de objetos, é bastante clara. Tomemos o exemplo clássico de uma cadeira. Naturalmente, pode-se perfeitamente sentar em uma cadeira (usá-la) e não ser o dono da mesma. O que caracteriza o seu dono é ser o tomador de decisões últimas acerca do controle da cadeira – aqui assume-se que o dono é um proprietário justo. No caso de um corpo isso claramente não vale: se você faz uso de um corpo, então você é o tomador último de decisões sobre ele. É inconcebível que uma pessoa não possua a si própria. A auto-propriedade só pode ser revogada ao se cancelar completamente o livre-arbítrio e a consciência do agente. O uso do corpo e sua propriedade (mesmo sendo logicamente distintos) têm a mesma extensão ou, em outras palavras, no caso de um corpo “uso” e “propriedade” se sobrepõem. É por os escravos terem, como última instância, a escolha final de obedecer seu mestre ou de se revoltar contra ele, que eles podem ser considerados donos de si. Assim, a escravidão não significa verdadeira propriedade sobre o corpo de alguém, mas efetiva violência ou ameaça de violência física e sistemática sobre uma pessoa [3].

Consideremos agora a questão de a partir de quando o indivíduo pode ser considerado dono de si. Ela pode ser deduzida da noção geral de elo objetivo da qual o homesteading é apenas um caso específico. No caso de objetos, o elo objetivo é determinado pelo primeiro uso, determinando a apropriação original, mas para que isso se dê maneira justa, o apropriador deve ser considerado como dono legítimo do seu próprio corpo. Isso ocorre quando há um elo objetivo entre ele e seu corpo. Para entender quando isso se dá, é preciso remontar ao nascimento de um ser-humano a partir de seus pais. Considerando que apropriar é precisamente trazer para o controle, uma pessoa, do nascimento à maturidade, vai realizando seu processo de auto-domínio até adquirir controle irrestrito sob seu corpo. Tal processo evolui na medida que suas ações vão sendo apropriadas pela sua própria vontade sendo esta expressa por sua capacidade de se comunicar, discutir e argumentar. Ao finalizá-lo, a pessoa passa a ter o controle exclusive sobre o próprio corpo sendo também um justo apropriador de recursos escassos em estado natural. Uma demonstração praxeológica da ascensão da maturidade ocorre quando a criança abandona os cuidados dos pais. É o fato dos pais, por definição mesmo, serem os primeiros a traçarem um elo objetivo com a criança ao produzirem ela – um elo natural portanto -, que os torna tutores legítimos da mesma já que qualquer reivindicação de terceiros não passa no teste do “primeiro usufruto”. Hans-Hermann Hoppe coloca isto da seguinte forma:

“É valioso mencionar que o direito de propriedade proveniente da produção encontra sua limitação natural somente quando, como no caso das crianças, a coisa produzida é ela mesma um outro agente-produtor. De acordo com a teoria natural da propriedade, uma criança, uma vez nascida, é tão dona de seu próprio corpo quanto qualquer outra pessoa. Então, não apenas a criança tem o direito de não ser fisicamente agredida, mas como dona de seu próprio corpo a criança tem o direito, em particular, de abandonar seus pais uma vez que esteja capaz de fugir deles e dizer “não” às suas possíveis tentativas de recapturá-la. Os pais apenas têm direitos especiais com relação à sua criança — proveniente de seu status único de produtores da criança — enquanto eles (e ninguém mais) puderem reivindicar o direito de serem os tutores da criança. E isso só acontece enquanto ela for fisicamente incapaz de fugir e dizer ‘não’.”[4]

A ética discursiva hoppeana

Após a descrição, vamos agora passar a justificar a auto-propriedade. Primeiramente, é importante salientar que, graças à natureza de nosso instrumento principal, a contradição performática, o sucesso da defesa a ser exposta aqui não depende da extensão que se dá a norma de auto-propriedade nem de sua descrição, de modo que são duas coisas de natureza distintas: (i) definir a autopropriedade e sua extensão normativa e (ii) justificar o axioma da auto-propriedade.

A ferramenta de contradição performática (ou performativa), a ser usada aqui, tem o papel de invalidar um argumento quando a ação que o levar em curso contradiz seu conteúdo. Para um exemplo, basta considerarmos qualquer afirmação que negue a frase: toda pessoa está sempre agindo para modificar uma realidade subjetivamente avaliada como menos satisfatória para um estado que parece mais recompensador. Pois, com efeito, qualquer negação já seria por si mesmo uma ação feita para alterar a realidade subjetivamente avaliada pelo argumentador em prol de um estado mais satisfatório, levando a uma contradição da prática com o discurso. Assim, a contradição performativa é uma ferramenta lógica que atua como filtro para declararmos quais afirmações tem natureza inatacável – aquelas cuja negação gera a contradição – ou quais afirmações são certamente falsas – aquelas cujo enunciado se contradiz com as condições da ação de enunciá-la. Está implícito aqui que estamos reconhecendo a argumentação não como proposição surgindo espontaneamente e independentemente de interlocutores, mas como uma ação propositada. Esse é o nosso primeiro passo: dado que o justo ou injusto só pode ser estabelecido com base em uma argumentação, toda norma para ser válida precisará estar de acordo com os pressupostos do discursos, i.e., com as normas subjacentes a qualquer argumentação. Isso é o que chamamos do a priori da argumentação. Hoppe destaca três fatos básicos acerca da natureza da argumentação:

“Primeiro, a argumentação não é somente uma tarefa cognitiva, mas também prática. Segundo, a argumentação, como uma forma de ação, implica o uso de recursos escassos de um corpo. E terceiro, a argumentação é um meio de interação não conflituoso, não no senso de que sempre há acordo sobre o que é dito, mas no senso que, enquanto a argumentação está em progresso, é sempre possível concordar pelo menos quanto ao fato de que há discordância sobre a validade do que tem sido proposto. E isto significa nada mais que um mútuo reconhecimento do controle exclusivo que cada pessoa exerce sobre seu próprio corpo e que deve ser pressuposto enquanto houver argumentação (note-se novamente que é impossível negar isto e requerer que esta negação seja verdadeira sem implicitamente ter de admitir sua verdade.).”[5]

A partir daí pode-se descartar qualquer norma que, uma vez enunciada, entra em contradição com os fatos acima. Em particular, toda norma precisa estar de acordo com o respeito à auto-propriedade dos interlocutores. Com efeito, ainda segundo Hoppe:

“Então, devemos concluir que a norma implícita na argumentação é a que qualquer pessoa tem o direito de controle exclusivo sobre seu próprio corpo como seu instrumento de ação e cognição. Apenas se houver pelo menos um implícito reconhecimento do direito de propriedade de cada indivíduo sobre seu próprio corpo poderá a argumentação ter lugar. Somente enquanto este direito for reconhecido é possível para alguém concordar com o que tem sido defendido em um argumento e então pode o que foi dito ser validado, ou é possível dizer “não” e concordar apenas com o fato de que há uma discordância.”[6]

Podemos resumir a defesa da auto-propriedade aqui exposta em quatro passos:

1) Toda posição ética, para ser racionalmente defensável, precisa ser justificada por argumentos;
2) Toda argumentação requer que os interlocutores respeitem cada um o corpo de outro e demanda que cada participante usufrua de controle exclusivo sobre o recurso escasso de seu próprio corpo;
3) Qualquer um que tente contestar o direito de propriedade sobre seu próprio corpo seria preso em uma contradição prática, uma vez que argumentar desta maneira já implicaria a aceitação da própria norma que ele está contestando. A negação do direito de auto-propriedade é portanto racionalmente indefensável;
4) Enquanto houver argumentação, há portanto reconhecimento mútuo da propriedade privada de cada um em seu corpo.

Note que a negação de 1) dá uma contradição prática pois qualquer negação da proposição já é em si um argumento. Em 2) há apenas uma constatação da natureza do discurso – a priori da argumentação. O passo 3) explicita a contradição performática em negar a auto-propriedade. Finalmente, em 4), conclui-se que em qualquer argumentação está implícita o reconhecimento da auto-propriedade.

Para ilustrar, tomemos como exemplo o caso do alistamento militar obrigatório. Suponhamos que um legislador entre em discurso – não necessariamente com o candidato compulsório ao alistamento – em defesa de uma tal norma, digamos: durante emergências nacionais, é necessário usar força para compelir certos indivíduos a agir pelo interesse público. Qualquer argumento em defesa de tal posição não passa no teste da contradição performática. De fato, o dono de si ao declarar que “donos de si deveriam ser colocados em serviço militar” pressupõem o axioma da auto-propriedade para declarar isso, donde a contradição: afirmar – implicitamente no a priori do discurso – e negar o axioma da auto-propriedade. Observe novamente que não se trata de uma contradição entre proposições – o ad absurdum típico da matemática – mas sim uma contradição entre o conteúdo de uma proposição e as condições para enunciá-la; uma contradição ontológica. Nesse ponto o leitor não terá dificuldades ao aplicar o raciocínio exposto para invalidar qualquer norma referente à proibição das drogas, o exemplo da introdução deste texto.

Mais geralmente, podemos concluir que toda ética normativa que reivindica a passar no teste formal da contradição performática precisa estar de acordo com o chamado “axioma” da não-agressão, i.e., precisa respeitar o direito de auto-propriedade. Podemos ainda extrair mais conclusões lógicas dessa discussão, estendendo a norma da não-agressão a propriedades adquiridas. Eis o próximo passo: deduzir o direito de apropriação original a partir do reconhecimento do direito à auto-propriedade.

Uma justificação para o homesteading

Como vimos, pode-se perfeitamente enunciar uma série de normas propositivas que se contradizem na ação do discurso. Vamos agora dar um exemplo de um direito que não só está de acordo com a auto-propriedade como também deriva-se dele via um argumento ad absurdum. O direito da apropriação original diz que qualquer indivíduo consciente ao agir intencionalmente misturando objetivamente seu trabalho para alterar bens escassos em estado natural – i.e. antes que qualquer outra pessoa o faça – terá a posse justa e absoluta desses bens modificados, desde que o curso de sua ação não altere a integridade física da propriedade de outrem sem consentimento. Em outras palavras, trata-se de uma extensão fenotípica do corpo do agente intencional à natureza ainda não apropriada.

A fim de demonstrar essa afirmação, pode-se proceder por absurdo [7]. A negação do princípio do elo original significa dar o direito de apropriação por via indireta que necessariamente passa por uma declaração verbal. Contudo, não se pode permitir que um indivíduo reivindique propriedades via declarações sem entrar em contradição com a auto-propriedade pois isto implicaria na possibilidade de reivindicar corpos de terceiros. Claramente isso envolve uma contradição prática pois ninguém pode entrar no curso de defesa de uma tal declaração sem simultaneamente reivindicar o controle exclusivo do próprio corpo. Mais ainda pode ser dito: a separação entre “meu e seu” não se baseia em declarações verbais, mas na ação objetiva. A observação se baseia em algum determinado recurso escasso que foi transformado em uma expressão ou materialização da vontade própria do indivíduo, de modo que qualquer um possa ver e verificar, pois existem indicadores objetivos para tal.

Assim terminamos a justificação dos princípios básicos acerca do que entendemos hoje por Ética da Liberdade, proposta por Murray Rothbard em sua obra de mesmo nome [8]. Com as noções de auto-propriedade e de aquisição de propriedades justas, podemos definir agressão como uma invasão não autorizada a  bens escassos adquiridos por tais princípios. De fato, Hoppe define o capitalismo como sendo o sistema social baseado nessa atribuição de direitos de propriedade e o socialismo como seu oposto, i.e., qualquer sistema social em que exista uma redistribuição institucionalizada de títulos justos de propriedade sem consentimento dos donos legítimos. Nas palavras de Hoppe:

“Se esse sistema [capitalista] for alterado e substituído por uma política que atribui direitos, ainda que parciais, de controle exclusivo sobre os meios escassos a pessoas ou grupos que não podem ser remetidas a um ato de uso prévio dos recursos em questão, e nem a uma relação contratual com algum usuário-proprietário anterior, então, esse sistema será qualificado como socialismo (parcial).”[9]

Referências

[1] Veja por exemplo http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=181 e http://spotniks.com/guerra-as-drogas/.

[2] Robert Nozick, Anarchy, State, and Utopia (New York: Basic Books, 1974), p. ix.

[3] Para uma discussão detalhada sobre a auto-propriedade e a escravidão, veja http://criticidadevoraz.blogspot.com.br/2015/07/uma-resposta-as-criticas-correntes.html

[4] Hans-Hermann Hoppe, Uma Teoria Sobre Socialismo e Capitalismo (Ed. São Paulo, Instituto Ludwig Von Mises Brasil), nota 2 do capítulo 9, página 102.

[5] Ibid. p. 135.

[6] Ibid. p. 135.

[7] Esse é um argumento de Hoppe exposto no artigo “The Justice of Efficiency,” Austrian Economics Newsletter, Vol. 9, No. 2 (Winter 1988). Uma tradução para o português está disponível aqui: http://www.hanshoppe.com/2015/02/portugese-translation-of-the-justice-of-economic-efficiency/.

[8] Murray Rothbard, “A Ética da Liberdade” (Ed. São Paulo, Instituto Ludwig Von Mises Brasil).

[9] Hoppe, Uma Teoria Sobre Socialismo e Capitalismo (Ed. São Paulo, Instituto Ludwig Von Mises Brasil), p. 27.

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